quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ler devia ser proibido

Recebi, por e-mail, recentemente, este texto. Comi cada pedaço, sem deixar nenhuma migalha, deste manjar delicioso criado pela escritora, dramaturga, historiadora e filósofa brasileira Guiomar de Grammont, nascida em Ouro Preto, Minas Gerais. Sem desmerecer os outros Estados de nossa República Federativa, eu particularmente acho que deve ter algo de sobrenaturalmente bom em Minas Gerais... Será o ar, a água, que faz essa gente pensante por demais? Sem entender os motivos, vou me deliciando e compartilhando do melhor de nossa gente.
Pra quem conhece essas palavras, é bom ler de novo. E, pra quem não conhece, é um caso a pensar : será que entendo o que leio? Tenho cuidado de arrebanhar, diante das enxurradas de informações, o que é realmete útil? Existe algum interesse obscuro para que não procuremos o conhecimento sadio e libertador?
Pensando nisto, vamos ao texto.


Ler devia ser proibido


A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.

Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova... Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.

Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.

Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos... A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

Guiomar de Grammon, In: PRADO, J. & CONDINI, P. (Orgs.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro - Argus, 1999. pgs.71-73

8 comentários:

  1. Luciana,
    Nós e as nossas contradições...
    Ao fim e ao cabo, não é o facto de ler que possibilitou este post? Não é esse mesmo facto que posibilitou o desabafo do autor?
    Talvez, isso sim, não usemos essa capacidade da melhor maneira. Mas isso já é outra questão.

    Beijo :)

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    1. Sim, Guiomar de Grammon usando muita ironia(pois o tema é denso), quer dizer, e com toda a razão, que uma leitura correta pode moldar o caráter, trazer a reflexão, nos tornando indivíduos melhores...
      E, a liberdade de espírito/pensamento é a mais importante, não é?
      Usar esta liberdade com lucidez, fundamental.
      Bjs.

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  2. Definitivamente, depois desse texto, está cientificamente comprovado que ler deveria ser, realmente, terminantemente proibido.

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    1. Ler nos faz refletir, analisar, ir contra o modus vivendi de nossa época... acredito, particularmente, que poderá vir este tipo de proibição, um dia, mas, se eu estiver aqui, com certeza serei uma rebelde...
      Um abraço,
      Luciana

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  3. Anônimo25/4/12

    LUCIANA ! Indo até um outro blog,cheguei aqui e gostei. Esse texto me prendeu aqui e o li. Gostei de tudo o que consta nele e ficou a frase final como lembrança: "Ler pode tornar o homem perigosamente humano".
    E como sou dado às leituras e a escrever,acho que todos deviam se arriscar a ser humano,e perigoso e passar a ler cada vez mais.
    Convido-a a visitar meu Blog "Espaço das Letras e Artes". E finalizo,lembrando de uma frase sua lá de cima: " Deve ter algo sobrenaturalmente bom em Minas Gerais ..."
    Eu acho também e gosto muito de minas e dos mineiros. Já fui passear e também a trabalho. Conheço algumas cidades de Minas e a capital Belo Horizonte.
    Fiz m texto sobre Tiradentes,Tancredo Neves e Brasília,no dia 21 de abril p.p. e evidenciei o Estado de Minas. Veja Lá.
    Gostei muito de seu "jeito" mineiro de ser...
    BOA NOITE,LUCIANA.
    TE AGUARDO !

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  4. Antonio,
    estou grata e alegre por você estar aqui, enriquecendo este espaço. Este texto é genial, pois com muita ironia Guiomar de Grammon diz, diz que ler é fundamental, enfatizando isto de forma negativa. Me lembra a oposição Russa, frente ao comunismo(estilo, em seu estilo de retórica. É um texto que mexe com a gente, com a nossa capacidade de compreende o que se lê...
    Bom dia,
    Luciana

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  5. Olá Luciana! Adoro este texto, apresentei-o na disciplina de francês quando andava no 12º ano (parece não ter nada a ver com a disciplina de francês, mas na altura sei que fez sentido...)
    "a leitura é um poder, e o poder é para poucos"
    Beijinhos*

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  6. Anouska, este texto, em minha opinão, deveria ser exibido em todas as disciplinas, pra "chacoalhar" a mente dos alunos...
    Bjs.

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